O Faz-de-conta no desenvolvimento psicológico infantil

Este artigo traz a importância do faz-de-conta na formação da criança em seu aspecto social, psicológico e cultural. A importância desta abordagem reside em compreender como a criança se apropria da linguagem em toda sua dimensão simbólica, para elaborarmos propostas didáticas que se adequem aos campos de interesses infantis. 

Introdução

A formação cultural das crianças começa pelas brincadeiras que ela estabelece com seu meio social no sentido de representa-lo e apropriar-se. A relação individuo/meio dependem das relações interindividuais e é portanto, mediada pelo grupo social. O psicólogo e filósofo Henri Wallon, afirma que o meio social tem duplo valor para a criança: é seu meio ambiente e é ao mesmo tempo, o meio de ação sobre outros meios ambientes. No sentido que um meio ambiente traz configurações de um meio social mais amplo, que possui os mesmos sistemas de valores deste pequeno meio onde a criança atua. 

Veremos neste artigo, as possibilidades que o conhecimento das relações entre as crianças e o meio social, traz para a educação infantil. Tentaremos abordar esta relação por meio da análise das brincadeiras infantis. Alguns temas serão delineados a partir desta perspectiva como: características do faz-de-conta; faz-de-conta na perspectiva do desenvolvimento infantil; perspectiva lúdica do faz de conta;

Características do faz-de-conta 

– No faz-de-conta a criança transforma os objetos presentes na sala em alguma outra coisa que não corresponde a sua realidade concreta.

– Transformam o ambiente físico em outros espaços imaginários

– Representam personagens familiares, segundo um script com regras para serem respeitadas pelos participantes.

– Representam animais, com utilização de gestos e expressões corporais.

– Tratam objetos inanimados como animados

Os meios que a criança dispõe para realizar estas transformações da realidade são: gestos, posturas, som e palavras.

Em todas estas ações e com utilizações destes recursos as crianças reproduzem significados já experimentados, e também constroem novos significados que fazem sentido em seu processo interacional com outras crianças.

No faz-de-conta subsiste a ação da criança de substituir um objeto real por outro objeto, uma ação real por outra ação. Ações e objetos do cotidiano e interações sociais fazem parte do referencial da criança: ações de trabalho e interações dos adultos que fazem parte do mundo socioambiental da criança são representadas por estas em suas brincadeiras. Portanto, a brincadeira de faz-de-conta é um ato de construção de linguagem, de significado e significações.

 Os objetos e ações reais são subordinados ao campo de significado pela criança. Por esta razão, os temas mais comuns das brincadeiras são temas vinculados ao seu cotidiano (COELHO e PEDROSA, 2000).

O faz-de-conta na perspectiva do desenvolvimento infantil

Em uma brincadeira de faz-de-conta as crianças, em espaços coletivos, estão engajadas umas as outras, construindo e compartilhando significados que são relacionados a situações reais de seus cotidianos.

É importante dimensionar a importância do compartilhamento de significados que ocorre em uma brincadeira de faz-de-conta. No sentido de saber como a partilha de significados influi no desenvolvimento infantil.

Para Wallon (1986), a criança de dois a três anos passa por uma etapa em que ainda não consegue “dissociar-se suficientemente” das situações das quais participa, subordinando também a “identidade” das pessoas às circunstâncias e à sua própria identidade (COELHO e PEDROSA 2000 p.57).

A criança experimenta representações que tem das coisas e dos outros que a cercam e nessa forma de brincar, ela possui vários papeis que são componentes de uma dada situação. 

A brincadeira de faz-de-conta, principalmente em espaços coletivos, em que exista uma troca interativa entre as crianças irão servir para fazer com que as crianças passem a discriminar cada representação transformando-as em significados partilhados.

Esses significados expressos por elas são, muitas vezes, de difícil apreensão pelo adulto e parecem compor redes, apontando representações que as crianças têm do mundo (objetos, pessoas) que as cerca (idem, p.61).

A dificuldade que wallon aponta, de crianças desta faixa etária, demonstrada na falta de dissociação ou separação entre ela e o referencial externo que representa é superada gradativamente, no processo evolutivo de seu desenvolvimento, e quando ela participa de brincadeiras compartilhadas.

Na brincadeira de faz-de-conta as crianças expressam, umas para as outras, os diversos significados que têm das coisas e do outro, o que proporciona uma diferenciação entre esses significados, constituindo assim delimitações entre representações mentais para as quais estes significados apontam (ibidem, p.64)

O lúdico e o faz-de-conta

 O historiador, Johan Huizinga (1996), quando em Homo Ludens, pesquisou o significado do jogo em uma amplitude universal, apontou dois aspectos fundamentais relacionados com a função do jogo: Uma luta por alguma coisa ou a representação de alguma coisa. Quando o jogo se caracteriza mais em uma função representativa da realidade ele se iguala com as brincadeiras de faz-de-conta, não havendo no principio estrutural de tal brincadeira, uma disputa.

A representação da realidade não é uma realidade falsa, e sim uma imaginação em seu sentido criativo. A criança quando brinca, cria novas realidades e imagens em um mundo simbólico. Um mundo plasmado com coisas de seu cotidiano concreto e também com coisas de um universo fantástico que ela constrói com que vivencia em seu cotidiano e com histórias que ouve e vê.

 Para Huizinga “a criança representa alguma coisa diferente, ou mais bela, ou mais nobre, ou mais perigosa do que habitualmente é. Finge ser um príncipe, um pai, uma bruxa malvada ou um tigre. A criança fica literalmente “transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem, contudo perder inteiramente o sentido da “realidade habitual”. Mais do que uma realidade falsa, sua representação é a realização de uma aparência: é “imaginação”, no sentido original do termo” (HUIZINGA, 1996, P.16).

 Na subjetividade da criança, o faz-de-conta está relacionado fortemente com suas experiências. A criança transporta a situação real para situação imaginaria, submete a realidade a sua ação. Em um espaço e tempo lúdico, a criança parece ser capaz de resumir em seus gestos, fala e postura, os modelos que conheceu da realidade. A criança transfere uma vivencia pontual e concreta para uma representação mais geral sobre esta vivencia do real. 

 Para Vygotsky, a criança até os três anos de idade,  reproduz uma prática em que ela mesma está inserida, ao fazer isso, ela passa a compreender as regras implícitas naquela situação e que regulam sua ação. Desta forma, cria uma representação do evento ao mesmo tempo multifacetada e sincrética, pois ainda não se separa dos eventos externos como objetos, situações e pessoas. Neste sentido, a criança confunde as relações entre suas próprias impressões com as relações entre as coisas (Gonçalves).

Esta análise sobre a criança desta faixa etária está como vimos nas acepções de Wallon, quando afirma que a criança não consegue dissociar-se suficientemente das situações que participa, esta situação tende a evoluir no desenvolvimento da criança para o pensamento objetivo pré-escolar, já em uma faixa etária entre cinco e quatro anos. A brincadeira de faz-de-conta compartilhada, ajuda nesta evolução, por meio dos processos sócio interacionistas.

 Retomando ao conceito de ludicidade de Huizinga, a criança não está apenas simbolizando o real, ela cria um espaço lúdico de realização e de invenção de prazer e desejo. Porém, quando este espaço é compartilhado com outras crianças ele se torna um terreno lúdico, demarcado de maneira temporal e espacial e que produz instrumentos mediadores entre sujeito e realidade.

Para Vygotsky (1984), uma criança não se comporta de forma puramente simbólica no brinquedo; ao invés disso ela quer e realiza seus desejos, permitindo que as categorias básicas da realidade passem através de sua experiência.

As brincadeiras de faz-de-conta quando motivadas na pré-escola – por meio de estímulos ambientais como espaços devidamente estruturados e estímulos emocionais como contação de histórias, teatro e livros – facilitam o desenvolvimento infantil, no que diz respeito a passagem da fase sincrética para o pensamento objetivo, privilegiando as funções mentais como memória, atenção e imaginação.

Conclusão

A importância de disponibilizar espaços lúdicos nas escolas em que as crianças interajam em suas brincadeiras não reside apenas em recreação, mas em um espaço de construção e apropriação da linguagem no que ela traz dentro de seu campo como: significados, significações, referentes, representações e simbolizações.

Sem este espaço e sem este momento, a criança é prejudicada em seu desenvolvimento natural e por vezes a escola pode ser o único aparato para tais momentos. De acordo coma semióloga Cristina Corea e o Historiador Ignácio Lewkowicz, devido a mutações culturais, as crianças já não se diferenciam dos adultos, fundamentalmente por duas razões: a relação com o consumo e o acesso a informação por meio da tecnologia.

 Em relação as mudanças estruturais que vivemos, em uma sociedade que valoriza a competição expressa nos jogos eletrônicos, quando não proporcionamos à criança, um espaço em que ela crie significações na interação com os outros e com a linguagem e oferecemos somente o mundo individualistas dos jogos eletrônicos que está intrinsicamente, ligado ao mercado de consumo, estamos criando um futuro de individualismo e violência. Além disso, poderemos ver a configuração de novos distúrbios de aprendizagem com novos rótulos.

A hiperatividade e os transtornos de atenção decorrem do tempo escasso de concentração em um objeto mental, onde a mente, de maneira imediata, tenta se deslocar  e encontrar outro objeto. 

O excesso nas atividades, em torno de jogos eletrônicos causa este deslocamento mental cada vez mais rápido, tornando a pessoa menos capaz em se concentrar, por exemplo, em uma interpretação de texto e mais capaz na competitividade.

 Quais capacidades, que vamos preferir para o futuro dos jovens.

BIBLIOGRAFIA 

GONÇALVES, M.F.C. Representação e faz-de-conta na educação infantil: entendendo os processos de desenvolvimento da criança in: UTSUMI;M.C. (org.) Entrelaçando saberes – Contribuições para a formação de professores e as práticas escolares. Florianópolis: Insular, 2002, p.71-91.

HUIZINGA J. H.  Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1996.

LÒPEZ M.E.  Um mundo aberto – Cultura a primeira infância. São Paulo: Selo Emília. 2018.

OLIVEIRA Z.M.R.  Acriança e seu desenvolvimento – perspectiva para se discutir a educação infantil. São Paulo: Cortez, 2000.

Pedro Guimarães – Mestre em música na área de Etnomusicologia pela UNESP. Professor de Música e Arte Educador nas seguintes Instituições: Serviço Social da Indústria (SESI); Centro de Educação Unificada da prefeitura (CEU); Faculdade Anhembi Morumbi; e Instituto Paulo Vanzolini (Formação de Professores). Músico multi-instrumentista e compositor de trilha sonora.

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