As Ambiguidades do discurso sobre o fracasso escolar

Para uma análise da situação contemporânea da educação brasileira, é crucial o entendimento de dois discursos que se constituíram no século XX, observando todas as diferentes nuances entre os grupos de pedagogos e educadores, defensores de cada discurso.

O discurso mais dominante e hegemônico, no Brasil do século XX, foi o que defende que o fracasso escolar possui suas causas fora da instituição, neste sentido responsabilizará os alunos, as famílias e os professores. Desta forma, não existe uma critica efetiva á instituições de ensino e nem ás políticas econômicas causadoras de desigualdades sociais cada vez mais marcantes.

O segundo discurso aponta para os mecanismos intra-escolares de seletividade social da escola. Em 1977 começa com a fundação Carlos Chagas um olhar critico para a instituição de ensino. A partir desta época desenvolvem-se alguns subprojetos de pesquisa voltados para a investigação da participação do sistema escolar no baixo rendimento de crianças de segmentos sociais mais pobres (PATTO, P.152).

Entre estes dois discursos existem gradações, superposições, contradições que fazem que sua fronteira seja de complexa visualização. Tentarei deixar alguns aspectos fundamentais dos dois discursos, ficarem demonstrados por meio do ideário que defendem, principalmente por meio de estereótipos e preconceitos advindo do primeiro discurso.

Introdução

A partir deste primeiro enunciado a proposta deste texto é  separar os discursos que desenvolvem estereótipos a respeito das crianças de estratos sociais mais baixos –  sejam baseados em teorias científicas, psicológicas ou culturais – dos discursos que aprofundam uma crítica social e institucional sobre a escola e também se opõe aos discursos ideológicos que naturalizam as diferenças de classes.

Portanto, para termos ideia ainda que panorâmica sore os dois discursos sobre o fracasso escolar precisaremos vislumbrar os fundamentos que sustentam seus argumentos.

O discurso dominante do século XX – hereditariedade

A teoria pedagógica do século XX passou por algumas transformações, mas sustentou o mesmo argumento ideológico em relação ao fracasso escolar: a tese que o fracasso escolar é responsabilidade do aluno, isentando a instituição e a metodologia de ensino sempre apoiadas pelo discurso médico e científico. 

O primeiro discurso tendo sua origem em séculos anteriores e se reforçando no século XX até os anos quarenta, se constrói o discurso herodológico, ou seja, fundamentado em teorias racistas, esta tese buscava vincular a diferença intelectual á hereditariedade, recaindo na superioridade da raça branca europeia em relação a outros segmentos raciais.

O discurso da carência cultural

 O segundo discurso, surgiu nos anos quarenta, com o médico psiquiatra Arthur Ramos, que se afastando das concepções racistas de cunho biológico e utilizando instrumentos conceituais da psiquiatria, criou a “psicologia da cultura” brasileira, desta forma, passou-se das teses sobre a hereditariedade para a influencia do meio no estudo dos determinantes da personalidade. 

Portanto, a responsabilidade do fracasso escolar recaia não sobre a raça, mas ao meio. Passou-se do preconceito racial para o preconceito social, onde o meio ambiente de classes sociais mais baixas era o responsável pelas dificuldades de aprendizado. A partir deste argumento, surge a tese da carência cultural ou diferença cultural, presentes em muitos artigos ainda hoje.

Discurso da escola nova

O terceiro discurso se desenvolve paralelo ao outros dois e é representado pelo ideário da escola nova que teve profunda repercussão no pensamento educacional brasileiro a partir dos anos vinte, tendo norteado a politica educacional até o inicio dos anos sessenta. Seu principal argumento é baseado na psicologia desenvolvimentista e na crença que a universalização e a diversificação do ensino promovem a igualdade de oportunidades. A teoria desenvolvimentista, fundamento científico da escola nova, tinha em um dos seus objetivos, determinar os mais aptos, por meio de variados testes psicométricos. Um destes testes aplicados ás crianças brasileiras é exemplificado pelos testes ABC, Estes testes ofereciam o diagnóstico individual com relação à maturidade para aprendizagem da leitura e da escrita e o prognóstico para a organização de classes seletivas: os “bem-dotados”, os “anormais” e os “subnormais”. A partir do resultado destes testes a criança era submetida a um trabalho corretivo no âmbito médico e pedagógico, quando seria encaminhada para instituições adequadas ou turmas mais lentas, ou em casos mais graves o impedimento de suas matriculas.

Neste sentido, as crianças eram avaliadas pelo principio de maturidade. A valorização do conceito de maturidade pela psicologia desenvolvimentista é criticado por Marilene Chauí (1978) em relação a ideia de conhecimento e educação subjacente a reforma do ensino, contrapondo a noção de imaturo, que as sociedades ocidentais modernas colocam a criança, a mulher e as raças tidas como inferiores ( negros, índios e  amarelos) e o povo (CHAUÍ,2016). 

Esta autora mostra a face desta imputação de imaturidade a alguns indivíduos, como legitimadora de poder sobre estes, e, portanto uma ação com intencionalidade política. Neste sentido ela desvela a falsa neutralidade científica, pois, se a noção de imaturidade é comprovadamente política e ideológica, porque o seu oposto – a maturidade – haveria de ser científica.

A identificação de mecanismos intra-escolares de seleção social

Segundo helena Patto (1999) o ano de 1977 é um marco na mudança de enfoque, sobre o fracasso escolar, a partir desta data passa-se a ter um olhar critico sobre as intuições de ensino. A fundação Carlos Chagas desenvolveu um conjunto de subprojetos voltados para investigações sobre os sistemas de ensino. Estas investigações apontavam a responsabilidades destes sistemas no baixo rendimento escolar de crianças pertencentes a segmentos sociais mais pobres.

A partir desta ação teórica e investigativa, surge uma concepção que se opõe ás teses sobre o fracasso escolar, que atribuíam a fatores externos, as causas deste fracasso e de sua consequente evasão escolar.

Neste sentido, esta nova concepção que se debruça sobre os mecanismos intra-escolares de seletividade social da escola, investiga os procedimentos discriminatórios e segregativos que recaem sobre os estratos sociais mais baixos da sociedade.

Portanto, esta concepção rompe com ideário liberal existente nos três discursos apontados acima: o discurso da hereditariedade; o discurso de carência cultural; e o discurso psicométrico da escola nova.

Vale lembrar aqui, o pressuposto central do ideário liberal sobre educação, o que atribui ao sistema capitalista às qualidades de oportunidade e igualdade e às relaciona a um sistema meritocrático. Neste sentido, os indivíduos mais aptos e adaptados ao sistema escolar e ao sistema social serão merecedores de sucesso educacional e profissional. Portanto, caberá à instituição de ensino, selecionar, já de maneira precoce, na primeira série do fundamental, quem continuará neste jogo. 

O resultado deste suposto sistema de mérito foi que as classes mais desfavorecidas economicamente foram excluídas em sua maioria, fenômeno comprovado por números estatísticos sobre a evasão escolar até meados da década de oitenta.

A nova concepção que aponta para a seletividade social da escola se posiciona também sobre o papel desta instituição, segundo a qual a escola estaria na vanguarda das mudanças sociais. Neste sentido, é importante entender o posicionamento da fundação Carlos Chagas sobre questões políticas inseridas no papel da escola:

“A posição que adotamos não se identifica nem com a crença daqueles que acreditam ser a educação, por si só, um instrumento para a construção de uma sociedade aberta, nem também com a posição dos que a encaram como simples reflexo das distorções mais ampla. Antes a vemos como uma área certamente determinada pelos condicionantes sociais e econômicos mais gerais, porém ainda contando com certo espaço próprio, que lhe permite relativa autonomia na determinação do sentido de sua ação na sociedade global” (citado por PATTO, 1999 p.153).

Neste posicionamento da Fundação Carlos Chagas, vislumbramos o papel social da escola, que mesmo com sua gama de contradições e problemas, ainda é um dos únicos meios de apropriação cultural e emancipação histórica e social da população mais pobre da sociedade. 

A partir deste novo olhar para escola, foi comprovada a seletividade social operada em seu âmbito e  abre-se um campo de pesquisa que tem em seu papel apontar os obstáculos, à escolarização das classes populares. Pesquisa que precisam assumir uma critica institucional, política e filosófica. 

Conclusão

Neste artigo vimos de maneira panorâmica e concisa, portanto ainda de maneira superficial, os discursos que perpassam o cenário escolar no brasil. Neste vislumbre podemos constatar que existem equívocos e superações no campo científico, político e social. Problemas advindos do campo político, principalmente os que se inserem na concordância de um projeto liberal, ainda subsistem em teses sobre carência cultural que em uma visão alienada, depõe contra as classes mais pobres da sociedade. Desta forma, apontam para falta de cultura e falta de preparo das crianças advindas desta classe, em descrições estereotipadas e estigmatizadoras.

Para termos uma posição sobre os problemas que transpassam o âmbito escolar, é necessária a valorização da pesquisa sobre a realidade. Neste sentido é preciso adotar uma concepção materialista histórica de sociedade como referencia de um projeto de pesquisa, que se opõe às posições positivistas que não descrevem a complexidade existente nas relações sociais. Para Kosik (1969), o método científico é o meio pelo qual se pode decifrar os fatos, revelar-lhes a estrutura oculta.

BIBLIOGRAFIA

CHAUÍ M. S. Ideologia e Educação – educação e sociedade, Campinas, ano II, n.e, p. 24-40, jan., 1980.

PATTO, M.H.S. A Produção do Fracasso Escolar – histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.

Pedro Guimarães – Mestre em música na área de Etnomusicologia pela UNESP. Professor de Música e Arte Educador nas seguintes Instituições: Serviço Social da Indústria (SESI); Centro de Educação Unificada da prefeitura (CEU); Faculdade Anhembi Morumbi; e Instituto Paulo Vanzolini (Formação de Professores). Músico multi-instrumentista e compositor de trilha sonora.

Deixe um comentário