História panorâmica da Música Ocidental
Resumo
Este artigo é o primeiro artigo de uma série de três, que discorreram sobre a trajetória histórica e evolução de música ocidental. Começaremos com a análise da música grega e medieval e como ela evoluiu dentro de perspectivas sociais, filosóficas e políticas. na Grécia, analisaremos o sentido abrangente que o povo grego dava a música, colocando-a como linguagem expressiva de grande importância. Passamos depois para a idade média onde começa com o canto gregoriano na sua primeira fase histórica e segue em um crescimento técnico e artístico coincidindo com o surgimentos das cidades e a queda do poder feudal.
Introdução
É uma tarefa muito difícil e que beira ao impossível, colocar a história da música ocidental dentro de um artigo. Por isso o recurso do nome “história Panorâmica”. O significado da palavra “panorâmica” nos remete a uma visão ampla da história da música, que nos permite vê-la de uma forma não tão detalhada e específica, mas que nos faz avaliar seus pontos de conexão com seu contexto histórico político e social.
Neste artigo veremos a evolução de música transpassada pelo contexto político e social que recai na conexão da música com o pensamento epistemológico, com o saber filosófico que determinou lugares da expressão e da linguagem musical.
Começaremos na Grécia que tinha a música como um lugar ou suporte para a ética e depois entraremos na concepção musical que determina o lugar da música como propagadora da fé e da filosofia cristã consubstanciada no estilo medieval. Observaremos como a música é vista no conhecimento filosófico, na mitologia e na ciência. Veremos também como a música evolui de maneira sintomática, acompanhando as evoluções do pensamento e das organizações sociais.
Estrutura de música Grega
A práxis musical Grega no seu sentido especificamente musical teórico e prático se fala pouco porque restou escassa documentação, no que diz respeito a partituras e tratados teóricos de música. A importância da música na Grécia vem expressa em um complexo de notas históricas ou lendárias. A música em si pelo pouco que resta dela – sete canções e alguns fragmentos – parece um tanto rudimentar. Pobre em instrumento musical, que com poucas variações, foram então todos reduzidos a dois tipos. Um instrumento de sopro – o Aulo – e o outro, um instrumento de cordas – A Lira (Mila, 1963, p.11).
Não existia ainda uma noção harmônica, a melodia era conduzida com pequenas variações de intervalos, com frequentes retornos a nota central. A vivacidade do ritmo é escassa, estritamente ligado à recitação e seguindo os esquemas métricos da poesia. O elemento principal da música era o tetracorde (grupo de quatro notas), geralmente usados em dois grupos iguais.
Os diferentes grupos de notas eram classificados e nomeados por modos e havia inicialmente, nove modos diferentes: lídio, frígio, dórico, e seus derivados, ipolidio e iperlidio; ipofrigio e iperfrigio; ipodórico e iperdórico.
O poder da música nas lendas
Mesmo que os escritos filosóficos e políticos não fossem adicionados para provar a importância da música para os gregos. As lendas antigas seriam suficientes para testemunhar o seu imenso poder (Mila, 1963, p.11).
Este poder da música é expresso na lenda de Orfeu que arrastava as pedras, as plantas e os animais com sua canção, ou na de Anfião, filho de Zeus, que construiu as paredes de Tebas com sua música. Ou ainda na história de Arion, que foi salvo da morte pelos golfinhos que foram evocados por sua canção. O poder que é dado a música pelos gregos não era apenas emocional, mas até mesmo de fascinação, paralisia ou excitação das faculdades volitivas. As artes literárias demonstram também esta importância dada a música. As grandes epopeias, supostamente escritas por Homero no século IX a.c, a Ilíada e a Odisseia, foram representadas sob a forma musical. Música e poesia foram estritamente unidas na Grécia, Homero é representado como um cantor cego acompanhando-se de uma cítara, um Aedo que cantava suas histórias.
Música e filosofia Grega
Na filosofia a música é vista como expressão de um etos, chamada de “Doutrina do èthos”. Doutrina derivada do pensamento de Pitágoras, que concebe a música como sistema de sons e ritmo regido pelas mesmas leis matemáticas que operam na criação. Desde o início da organização social e política grega acreditava-se que a música influía no humor e no espírito dos cidadãos. A música era vista com certa cautela, por esta atingir o estado de espírito das pessoas. Nas cidades-estado, ela foi objeto de preocupação dos governantes, e a responsabilidade por sua organização e pela maneira como seria apresentada ao povo, estava nas mãos dos legisladores. Para Platão a música ocupava uma posição de protagonismo liderança em relação às outras artes, o proposito da música não podia ser apenas a diversão, mas “a educação harmoniosa, perfeição da alma a o aquietamento das paixões” (Lang, 1941, p13). Pode-se dizer que Platão é o maior representante da concepção ética da música, com o qual se da um passo a frente, pois se aproxima da realidade musical em si, mas em vez de estudar sua essência, estudou somente seu efeito, colocando o ensino da música sobre um terreno quase exclusivamente pratico da educação moral e civil. Confirmando este visão prática e moral, Platão, em sua república, proibia o uso sensual da música traduzido na harmonia Lídia (organização melódica de notas).
Aristóteles tem as mesmas ideias de Platão, mas com uma visão estética e ética um pouco mais ampla, porque ele não exclui a música dolorosa e voluptuosa só que sem invadir o campo do outro, ou seja, sem a transmissão de tal efeito. Também adiciona o famoso conceito da catarse, Um consolo momentâneo trazido ao espírito pela reprodução estética do afeto pela qual a alma do paciente é oprimida. Neste sentido, e segundo Massimo Mila, em seu livro “Breve Storia Della Musica”, Aristóteles captura qualquer significado espiritual mais profundo que poderia ser atribuído à criação artística, reduzindo a música a uma espécie de medicina homeopática. Para Aristóteles a música é uma representação perfeitamente objetiva dos sentimentos dos outros, no sentido de arte como imitação da natureza. Este erro de concepção produz uma música totalmente ilustrativa, em detrimento de um lirismo mais expressivo, que pode ser atribuído à música.
Razão e sentimento
Platão e Aristóteles concordam com acepção prática da música em que seus efeitos provocam sentimentos variados nos ouvintes, como descrito na doutrina do éthos. A diferença é que Aristóteles reconhece a influencia da música sobre os desejos humanos por meio do conceito de imitação, pois, para ele, a música imita as paixões e os estados da alma (Lang, 1941, p18). Os dois principais instrumentos musicais dos gregos. O Aulo e a Lira, até hoje permanecem como símbolo dos de dois tipos de música, A música da razão e a música dos sentimentos.
Podemos voltar as lendas para delimitar estes dois tipos de músicas. Num deles, a música teria surgido quando Hermes, encontrando uma carapaça de tartaruga na praia, estendeu sobre ela cordas de tripa de carneiro, inventando a lira, que deu de presente a Apolo. A outra lenda, contada por Píndaro, diz que o aulos foi criado por Palas Athena, quando, após a Medusa ser decapitada por Perseu, viu, comovida, suas irmãs lançarem gritos pungentes que carregavam consigo todo seu sentimento de pesar diante da morte. A partir desse sentimento de extrema dor, ela criou um nomos especial em sua honra, estava criada a música (Fonterrada, 2005, p.21).
Veremos a seguir, estas duas concepções da arte musical se debaterem. A lira como símbolo da razão, instrumento de Apolo que induz à serena contemplação do universo e o aulos, um instrumento de sopro com palheta bastante estridente, de origem oriental , é o instrumento de Dionísio, da exaltação e da tragédia.
Música na Idade média – Canto Gregoriano
A Idade média é marcada como um longo período, que podemos colocar entre 500 d.C. a 1450 d.C., em que figura o sentimento religioso. Em confronto com o uso puramente prático da música antiga romana, o cristianismo introduz uma concepção bem mais espiritual, não que o uso do canto nas cerimonias eclesiásticas não tivesse também um intuito prático. Mas o destino sacro elevou a música a um senso de solene e sublime misticismo, fazendo-a capaz de dar forma artística ao sentimento do divino, do misterioso e do celeste.
Entende-se com a designação de canto gregoriano toda a práxis da música feita durante o medievo no âmbito religioso, desde a origem do cristianismo até a origem do humanismo, quando se estabeleceu de forma efetiva o estilo de música polifônica. O nome “Canto Gregoriano” é atribuído ao Papa Gregório Magno, que no final do século VI escolheu e coordenou os cantos segundo a ordem das festas e cerimônias. Trata-se de uma música vocal monódica (uma só melodia), enquadrada no esquema da liturgia católica
Gregório, portanto não só compôs algumas canções novas, mas também revisou e compilou todas as já existentes, e reuniu em uma espécie de súmula chamada de “Antifonário”. Este livro foi perdido durante a invasão bárbara, mas algumas copias foram feitas e este estilo musical difundiu-se pela Europa. A difusão e o incremento desta práxis musical foram feitas por pregadores e soberanos ansiosos como Pipino, o Breve, e Carlos magno, em universalizar o rito romano, diante da profusão de ideais de independência de diversos povos e culturas. Na tentativa de centralização do poder do império Carolíngio.
Segundo alguns relatos, a difusão do canto gregoriano para Europa se deu após o papa Adriano I enviar dois cantores a Carlos Magno, Petros e Romanus para colaborar na unificação religiosa e política da Europa por meio do canto litúrgico e do rito católico romano universal. Petro se estabeleceu em Metz na França e Romanus na abadia suíça de San Gallo dando origem a duas primeiras escolas de canto Gregoriano.
Atendo-se para as influencias sofridas pelas formas e estilo do canto gregoriano, É muito provável que as primeiras comunidades cristãs herdassem das formas culturais do judaísmo os modos típicos de recitar os salmos na liturgia, a salmodia solística (ou in directum), a salmodia responsorial – simples ou em coros alternados. A igreja católica teria utilizado a salmodia judaica, para a criação de novos cânticos.
Estrutura do canto Gregoriano
Na origem da liturgia cristã existem duas formas de organizar o canto, definidas com nome de accentus e concentus que irão refletir nas formas recitativas e nas áreas. Estas duas formas determinaram a evolução do canto gregoriano.
O accentus, ou canto silábico, foi sem dúvida a primeira forma de canto sacro. Consiste na recitação expressiva e cadenciada das orações.
No concentus, já existe uma entonação melódica com cada sílaba correspondendo a uma nota, geralmente se usa uma entonação só, variando apenas na cadencia final.
Importância da música para a filosofia
No âmbito filosófico a idade média é representada pelo pensamento católico, neoplatônico e escolástico, consubstanciado nas teorias de Agostinho, Boécio, Abelardo e Tomás de Aquino. O inicio da idade média estabelece um contato direto com a ciência musical clássica de influencia grega. O simbolismo numérico dos neopitagóricos continua nos escritores cristãos, e a música desempenha importante papel nas explicações alegóricas.
A música passa a fazer parte do Quadrivium junto com a aritmética, a astronomia e a geometria. Seguindo os ideais de Pitágoras descrito na doutrina do èthos, os estudiosos da música acreditavam que as relações numéricas contidas nas escalas modais modificam o comportamento humano.
Mas na idade média, a missão da música de servir a moral e aos bons propósitos é ampliada. O pensamento medieval mais aliado ao aspecto teórico da música acredita que sem a música, nenhuma disciplina poderia ser perfeita.
Boécio, filosofo que viveu no século VI no reinado de Teodorico, ainda no império romano, influenciou o pensamento musical da idade média. Ele descreve os efeitos da música no homem e define o seu domínio; de acordo com ele, existem vários tipos de música: musica mundana, música humana, musica constituta in instrumentus (refere-se às ferramentas de observação científica).
A primeira, música mundana, referindo-se ao movimento dos planetas, à organização dos elementos e à música das esferas. A segunda, música humana, que une ao corpo o espírito eterno, incorpóreo, de modo semelhante à formação das consonâncias de sons agudos e graves, a partir de determinada ordem numérica. A última, música constituta in instrumenti, segundo ele, é a única forma de música percebida sensorialmente (Lang, 1941, p.60). Influenciado por Platão e Pitágoras, vê a música como ciência e não como arte.
Nova Concepção da Música
A visão teórica da música sofre uma substancial transformação a partir de Guido D’Arezzo no século XI. D’Arezzo foi um monge italiano, regente da catedral de Arezzo, província de seu nascimento, foi o criador da notação moderna (partitura) e nomeou os nomes das notas como se conhece hoje (do, ré, mi fá sol, lá si), baseando-se no texto latim que homenageia São João Batista.
- Ut queant laxis
- Resonare fibris
- Mira gestorum
- Famuli tuorum
- Solve polluti
- Labii reatum
- Sancte Ioannes
O UT passou a ser DO, para facilitar a entonação vocal, e o SAN em SI em razão das duas letras iniciais de São João.
Tradução do texto:
“Para que teus grandes servos possam ressoar claramente a maravilha dos teus feitos, limpe nossos lábios impuros, ó São João”.
O século XI de Guido D’Arezzo é marcado pelo final do período Gótico que se caracteriza pelo desenvolvimento da polifonia. Esta forma de composição se diferencia do estilo monódico ou homofônico (uma só melodia) do canto gregoriano, integrando vozes com diferentes melodias simultaneamente. A multiplicidade de vozes torna-se, então, a marca da música ocidental, requerendo do ouvinte um jeito diferente de escutar, se comparado à homofonia. Na polifonia o ouvinte tende a escolher e dar prioridade as partes que quer ouvir, pois estas acontecem ao mesmo tempo. Há na audição uma escolha, uma seleção de trechos ou agrupamentos melódicos tornando o ouvinte um coautor da obra.
Mudança Social e Artística
Este sopro de renovação na música é sintoma do cenário histórico que se esboça a partir do século X quando a vida medieval vai aos poucos perdendo seu aspecto imóvel e estratificado.
Esta época coincide com o surgimento das cidades livres e na decadência do poder feudal, conhecida como época escolástica, o feudalismo apresenta sintomas de perecimento desde o século XI. A elaboração da filosofia escolástica atinge, posteriormente, seu auge, com São Tomás de Aquino.
A formação das comunas e das cidades livres, a criação e o fortalecimento da burguesia, estão intrinsicamente conectados com este fenômeno. Esta queda do feudalismo irá, claramente influenciar o pensamento filosófico e, por conseguinte a música. O aumento da população e da importância das cidades acarreta o despertar das atividades humanas há muito adormecidas como a atividade comercial, cultural e artística. A mudança filosófica e profunda, que ocorre na igreja e que podemos dizer que irá influir na criação musical é a transferência do pensamento platônico ligado à concepção dos universais para a inclusão do pensamento aristotélico. A filosofia dialética de Aristóteles resultou em um predomínio da razão e um desprezo pela observação dos fatos, pela comprovação material e pela experimentação causando entrave ao progresso científico.
Conclusão
Vimos até aqui, dois grandes períodos históricos que se entrelaçam em seis atividades humana: Políticas, filosóficas, artísticas, religiosas, mitológicas e científicas e como a música dialoga com estas formas de ação humana. Acompanhamos como a música foi utilizada na expressão de outras linguagens artísticas e como também foi utilizada pelo controle do poder. Poder circunscrito nos campos político, social, religioso e filosófico. A utilização da musica nesses campos irá tecer muitas ramicações como na propagação da fé católica, aumento da expressividade e dos efeitos catárticos, e a constante evolução da sensibilidade e da racionalidade. Nestas ramificações não há nem a preponderância da sociedade sobre a música, nem o seu inverso. Existem sim, sempre algumas trocas que vão se esboçando na temporalidade da história. Serão justamente estas trocas que veremos no trajeto histórico dos próximos textos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CADERNO de Música Volume I/ Serviço Social da Industria, São Paulo: SESI SP Editora, 2014.
FONTERRADA, M, De Tramas e Fios – Um Ensaio Sobre Música e Educação. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
LANG, H. Music in Western Civilization. London: J.M. Dent, 1941.
MILLA, M. Breve Storia Della Musica, Torino, Einaudi, 1963.
MONTEIRO, D. O Livro de Todos os Tempos – História da Civilização, Rio de janeiro, Editora Lidador, 1964.

Pedro Guimarães – Mestre em música na área de Etnomusicologia pela UNESP. Professor de Música e Arte Educador nas seguintes Instituições: Serviço Social da Indústria (SESI); Centro de Educação Unificada da prefeitura (CEU); Faculdade Anhembi Morumbi; e Instituto Paulo Vanzolini (Formação de Professores). Músico multi-instrumentista e compositor de trilha sonora.
Deixe um comentário