Escola: uma dimensão paralela

Escola: uma dimensão paralela

Os conceitos de profanação e suspensão segundo Jan Masschelein e Maarten Simons no livro “Em Defesa da Escola: uma questão pública”. 

Publicado no Brasil em 2013 pela Editora Autêntica, junto a coleção “Educação: experiência e sentido” que traz textos necessários para se compreender os horizontes do ensino, o livro “Em Defesa da Escola: uma questão pública” suscita imprescindíveis reflexões para se pensar o papel da instituição escolar na atualidade. Mantendo uma postura de esperança e otimismo crítico perante as potencialidades da escola, os autores discorrem acerca das tentativas de definição e controle dessa instituição, dos problemas que se desenrolam em seu espaço e das possíveis perspectivas que podem forjar soluções para fatores que causaram (e causam) sua certa “inadequação” frente à realidade moderna.

A promessa do presente texto é introduzir duas das várias ideias apresentadas por Jan Masschelein e Maarten Simons no mencionado livro: os conceitos de profanação e suspensão em contexto escolar. 

  1. Skholé (σχολή): tempo livre

Para se ter uma concepção abrangente e viva de algo, muitas vezes é preciso retornar à sua gênese. É este movimento retrospectivo da análise primeira de Masschelein e Simons perante o léxico “escola”, proveniente do grego skholé e significando, sobretudo, “tempo livre”. Os autores circunscrevem o tenro surgimento da instituição escolar nos primórdios da pólis grega, tal início tem raízes firmes, portanto, enquanto invenção política da sociedade helenística.

a escola grega surgiu como uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares na Grécia antiga. Na escola grega, não mais era a origem de alguém, sua raça ou “natureza” que justificava seu pertencimento à classe do bom e do sábio. Bondade e sabedoria foram desligadas da origem, da raça e da natureza das pessoas. A escola grega tornou inoperante a conexão arcaica que liga os marcadores pessoais (raça, natureza, origem, etc.) à lista de ocupações correspondentes aceitáveis (trabalhar a terra, engajar-se no negócio e no comércio, estudar e praticar). É claro que, desde o início, havia diversas ocupações para restaurar conexões e privilégios, para salvaguardar hierarquias e classificações, mas o principal e, para nós, o mais importante ato que a “escola faz” diz respeito à suspensão de uma chamada ordem desigual natural. (MASSCHELEIN, SIMONS, 2013, p. 14)

Teoricamente, o processo de suspensão de uma ordem desigual – ou status quo – da macrosfera, tanto da sociedade em si (pólis) como do núcleo familiar (oikós), suscitado na parturição de um tempo não produtivo (ocioso) e de um espaço outro (nos quais as heteronomias da sociedade e da família não se sustentam), instauram algo como uma realidade paralela, um outro lugar, um lugar que tem seu tempo e espaço separados da sociedade como um todo: é este o lugar do aprendizado. 

O ato de desvincular um conhecimento de sua aplicação na sociedade, examinando-o de várias formas possíveis, dissecando-o, esmiuçando o entendimento até compreender o todo de seu funcionamento, é em si a principal atividade da escola. E tal movimento de separação consiste, precisamente, no que é chamado de “ócio”, ou tempo não produtivo: um momento em que não se instrumentaliza um saber ou uma coisa para o trabalho (exemplo, ao se estudar a forma como uma bolinha cai no chão em uma aula de física mecânica, visa-se entender uma variedade de movimentos e suas respectivas cinéticas, um entendimento geral dos fenômenos físicos é priorizado sobre um entendimento funcional e específico). 

O tempo livre que provoca a suspensão de uma ordem desigual e faz com que a escola tenha um lugar próprio e separado (fora) da sociedade (quase como utopias e heterotopias), é, então, estabelecido, especialmente, no ato de desvincular os conhecimentos e habilidades de suas funcionalidades e usos sociais convencionais e oportunos, é este um ato de libertação dos saberes. 

  1. O jogo de profanações do saber

A libertação dos saberes animada pelo ato de desvinculá-los de seus usos (capitalizados) obrigatórios e convencionais, devolvendo-lhes certa autonomia, é também um ato de profanação. De acordo com a concepção de Jan Masschelein e Maarten Simons, a apropriação de conhecimento característica do processo de aprendizado se relaciona com o ato de profanar uma informação pré-estabelecida: profanar é desligar algo de seu uso habitual, subverter sua ressonância sagrada (ou melhor, sacralizada) e inacessível, e devolvê-lo ao uso comum, ao uso democrático.

Os autores atribuem ao léxico “profanar”, por conseguinte, o significado de compartilhamento e democratização dos conceitos. Com essa reflexão, retiram (um pouco) o foco canônico e religioso ao qual a palavra foi atribuída e sedimentada por fruto de uma construção realizada, principalmente, pelas instituições católicas no decorrer da manutenção de seus costumes, a fim de justificar as violências cometidas nos processos de catequização. É largamente difundido o significado de profanação enquanto algo “estranho à religião” ou “leigo”. 

A profanação, ou seja, a democratização daqueles saberes que, à princípio, são misteriosos e despertam curiosidade, dá forma a uma profanação do sacralizado, ou, melhor dizendo, numa restituição do caráter público, comum e acessível de um conhecimento que antes operava em um segmento restrito e exclusivo. O ato de profanar, além disso, quebra a unidade do que constitui aquilo que é sacro: o ludus (ritual, jogo físico) e o locus (o mito, o jogo de palavras). É a profanação, portanto, que retoma o que há de mais vivo no exercício filosófico e no aprendizado: a liberdade. 

  1. Suspensão: a escola como um temenos 

Antes de mais nada, o tribunal pode também ser chamado uma “corte” de justiça. Esta corte é ainda, no sentido pleno do termo, o ιερό κύκλο, o círculo sagrado dentro do qual, no escudo de Aquiles, aparecem sentados os juízes. Todo lugar onde se ministra a justiça é um verdadeiro temenos, um lugar sagrado, separado e afastado do mundo vulgar. Em flamengo e holandês antigo, a palavra que o designa é vierschaar, o que, à letra, quer dizer um espaço delimitado por quatro cordas ou, segundo uma outra interpretação, por quatro bancos. Mas, seja quadrado ou redondo, de qualquer forma é sempre um círculo mágico, um recinto de jogo no interior do qual as habituais diferenças de categoria entre os homens são temporariamente abolidas. (HUIZINGA, J., 1996, p.88)

Trazemos aqui um excerto de “Homo Ludens”, escrito por Johan Huizinga, a fim de tensionar outra concepção da suspensão e justapô-la àquele profano inerente ao compartilhamento e democratização de saberes: trata-se da suspensão instaurada em espaços da justiça e do direito, a qual se aproxima da ideia do “jogo” (ludus). Huizinga ressalta a seguinte característica deste espaço “sagrado”: a capacidade de abolir temporariamente as habituais diferenças entre as pessoas que o adentram. 

Nos lugares da justiça, aqueles que a ministram “saem de seus lugares comuns”, de sua vida habitual, e, de certo modo, da esfera profana cotidiana. São estes os lugares sagrados, mitológica e/ou historicamente estabelecidos: alhures que se alçam a outra realidade, a qual, por sua vez, se sobrepõe, suspensa, à realidade comum (e, de certo modo, profana). 

No decurso do tempo, evidentemente como se pode intuir, por mais que tais ambientes tenham tal gênese ritualística e lúdica – que garantia uma suspensão prática das desigualdades e diferenças habituais entre os indivíduos -, o que de fato prevalece na atualidade é a intensificação de tais disparidades mesmo dentro de ambientes instituídos supostamente “separados” ou “suspensos” da vida comum. Ou seja, tem-se uma incapacidade latente de operar a suspensão, seja por meio da profanação democrática de saberes, seja pelo estabelecimento de um tempo outro no interior desses espaços. Portanto, aquela premissa da skholé da antiga Grécia – de abolir as diferenças hierárquicas e desigualdades entre as pessoas – não se verifica nas escolas modernas pelos mais variados motivos.

A tese exposta em Em Defesa da Escola tem como centro, justamente, tal problemática: a falta de autonomia das escolas e do ensino. A fim de entender e expor os diversos mecanismos (exógenos) que regulam e controlam o ensino formal na instituição escolar e que usurpam desta a possibilidade de instaurar a suspensão, os autores refletem acerca de uma série de situações que tem como palco o ambiente escolar. As situações debatidas apresentam conflitos entre a liberdade (autonomia) dos seres escolares (alunos e professores) e as demandas de ensino (heteronomias)  impostas ora pelos pais, ora por organizações que investem em instituições de ensino, ora pelo Estado. Ademais, têm-se, ainda, as imposições dogmáticas e preconceitos que se cristalizaram e se sedimentaram no próprio conhecimento científico por meio dos processos de subalternização e aniquilação de povos que detinham em suas sociedades outros saberes.

As demandas obrigatórias de ensino que conduzem o conhecimento a uma concepção tradicionalmente estabelecida por gerações anteriores acaba por anular qualquer possibilidade de realizar a profanação que democratiza o saber.  Dessa forma, refletir e tentar pôr em prática – novamente – a suspensão na Escola, é uma possibilidade de “resgatar” a Escola de tamanha – e profunda – submissão à oikos e à pólis. Consiste então na tentativa de verter a instituição para seu originário significado etimológico, o de tempo livre. 

  1. Da (i)mutabilidade das Instituições: uma profusão de questionamentos

Um dos pontos críticos que caracteriza os debates da chamada “pós-modernidade” é, a saber, o impasse e a incerteza quanto às possibilidades de resistência e liberdade dos indivíduos frente às instituições, entre as quais, como vimos, a escola tradicional é uma delas (uma das mais importantes, inclusive). O questionamento é muito simples e incômodo: nós somos livres? 

Eis que a instituição escolar se faz campo de batalha entre diversas prospecções e análises quanto à problemática da resistência e da liberdade. Por um lado, podemos nos convencer de que se trata de uma instituição que reproduz falhas imutáveis, de que o conhecimento partilhado nela e através dela sempre será submisso a determinados valores e tradições fundamentadas na sociedade às quais sempre estaremos assujeitados. E, num extremo radical, incentivar sua abolição absoluta. Ou, por outro, podemos observar a escola enquanto um lugar cheio de potencialidades, ainda que esteja na linha de fogo entre os mais variados interesses exógenos a ela. 

Refletir sobre se a escola abole as desigualdades entre os indivíduos ou se finda por intensificá-las se faz extremamente necessário na atualidade. Para um aprofundamento inicial nessas questões, é interessante consultar as teorias crítico-reprodutivistas de filósofos como Pierre Bordieu, Jean-Claude Passeron e Louis Althusser, e as teorias que apresentam uma perspectiva crítica diante ao reprodutivismo, como elaboradas por pensadores como Jacques Rancière e Michel Foucault. 

Conclusão

As propostas trazidas por Jan Masschelein e Maarten Simons apresentam interessantes formas de se olhar os futuros da instituição escolar. A valorização de processos tais como a suspensão e a profanação enquanto potenciais recursos de restabelecimento do que há de mais importante na escola é uma perspectiva que inspira otimismo. Por fim, o questionamento da Escola enquanto reprodutora de desigualdades contraposto a esperança de entrever sua essencial potência de abolir tais injustiças se faz necessário na atualidade.    

Bibliografia
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. 

MASSCHELEIN, Jan. MAARTEN, Simons. Em defesa da Escola: uma questão pública. 1. ed. SP: Autêntica Editora, 2013.

PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. Sâo Paulo: Casa do Psicólogo, 1999 

MATERIAL DA INTERNET 

ARENDT, Hannah. A Crise na Educação, 2015. Traduzido de Between Past and Future: Six Exercises in Political Thought, New York: Viking Press, 1961, pp. 173-196. Texto originalmente publicado em 1957 na Partisan Review. Disponível em: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/otp/hanna_arendt_crise_ed ucacao.pdf 

AGAMBEN, Giorgio. Profanations. Cap. 9 – In praise of profanation. NY: Zone Books, 2007. Disponível em: http://v3.ellieharrison.com/money/profanations.pdf 

BERTICELLI, Ireno A. Da escola utópica à escola heterotópica: educação e pós-modernidade. Educação & Realidade, v. 23, n. 1, 1998. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71351 

FOUCAULT, Michel. De espaços outros. Estud. av., São Paulo , v. 27, n. 79, p. 113-122, 2013 . Available from . access on 02 Aug 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142013000300008. 

Clarissa Ricci – Arte/educadora, artista plástica, e ilustradora. É graduada em bacharelado e licenciatura em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UNESP, e formada pelas experiências em mediação e arte/educação no Museu de Arte Moderna de São Paulo, onde trabalhou de 2017 a 2019, enquanto membro da equipe educativa. Tem em sua formação literária os saberes compartilhados no Curso Livre de Preparação do Escritor, oferecido pela Casa das Rosas, do qual participou em 2014 (CLIPE Jovem) e 2015 (CLIPE Anual). Em sua investigação acadêmica e artística busca tensionar uma pesquisa acerca da produção artística latino americana com a parturição de uma visualidade e linguagem próprias.

2 Comments

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